segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Alvim errou a mão na trollagem nazi inspirada na direita dos EUA

Alvim errou a mão na trollagem nazi inspirada na direita dos EUA

Estratégia da alta-right é fomentar extremismo com ambiguidade entre verdade e ironia
Rodrigo Nunes, Folha de São Paulo (21/01/2020)

Autor considera que o ex-secretário de Cultura Roberto Alvim foi pego em flagrante fazendo um jogo de provocação que o núcleo ideológico do bolsonarismo aprendeu com a alt-right americana. Impedir que a extrema direita continue ganhando terreno exige parar de tratar os “excessos” como casos isolados e se recusar a permitir que ela continue jogando.

Há quem ainda se refira a Jair Bolsonaro e o núcleo ideológico que o cerca com palavras-Pilatos como “polêmico” e “controverso”. A ascensão e queda de Roberto Alvim indica, porém, que mesmo a classificação mais apropriada de “extrema direita” é imprecisa.
Desde suas técnicas de comunicação até cacoetes como a obsessão pelas Cruzadas e os gritinhos de “Deus vult!”, o modelo dos ideólogos bolsonaristas é a franja radical conhecida nos Estados Unidos como alt-right.
Uma constelação heterogênea de grupos e figuras públicas traficando um coquetel insalubre de supremacismo branco, misoginia e, sim, flertes com o nazismo, a alt-right ficou conhecida internacionalmente por seu engajamento na campanha presidencial de Donald Trump —em quem viu, mais do que um aliado, um veículo para propagar suas ideias.
Além das crenças extremas, a diferença da alt-right para o conservadorismo mainstream está em seu domínio instintivo da comunicação em tempos de redes sociais, clickbait e economia da atenção.
Como tantos outros, eles perceberam as possibilidades oferecidas por um ecossistema informacional em que qualquer um pode publicar qualquer coisa a quase nenhum custo, e fontes suspeitas são difíceis de distinguir das confiáveis; em que a caça por cliques privilegia manchetes sensacionalistas e frequentemente falsas; em que a busca dos algoritmos por engajamento favorece conteúdos extremos; e em que uma interpretação pusilânime do dever jornalístico de “ouvir os dois lados” contribui para dar valor de verdade a narrativas sem qualquer lastro nos fatos, transformando mentiras em “diferenças de opinião”.
Antes e melhor que muitos, no entanto, foi a alt-right quem descobriu as vantagens de assumir a posição de uma das figuras centrais da cultura contemporânea: o troll.
Embora a etimologia do termo seja duvidosa, o troll é tão ubíquo e fácil de reconhecer que a palavra já migrou para a vida offline. Ele é alguém que busca instigar reações fortes e parece se alimentar da própria capacidade de causar confrontos e expor os outros ao ridículo.

Pela Pátria, pelos Lulz

Embora a etimologia do termo seja duvidosa, o troll é tão ubíquo e fácil de reconhecer que a palavra já migrou para a vida offline. Ele é alguém que busca instigar reações fortes e parece se alimentar da própria capacidade de causar confrontos e expor os outros ao ridículo.
Embora seja hoje instrumentalizada para uma série de fins políticos e comerciais, na origem da trollagem como fenômeno cultural está uma ética que põe um humor iconoclástico e sem limites — lulz, na linguagem da internet — acima de qualquer consideração de bom gosto, moral, utilidade política ou mesmo bem estar alheio.
Este descompromisso com os efeitos possíveis da própria ação é facilitado pela dissociação emocional característica da vida online. Na internet, mesmo quando não estamos interagindo anonimamente, a mediação tecnológica nos desinibe para agir diferentemente do que faríamos offline, e frequentemente nos faz esquecer que há pessoas de carne e osso do outro lado.
Como uma camada extra de dissociação, aquilo que a pesquisadora Whitney Phillips chamou de “máscara da trollagem” cria uma barreira afetiva que permite ao troll minimizar as consequências do que faz e sustentar a inocência de suas intenções — que não pretendem causar mal algum, são “apenas diversão”.
Por trás deste mecanismo está uma assimetria que Phillips explica a partir da teoria do jogo de Gregory Bateson. Se uma brincadeira supõe o entendimento tácito entre os participantes que as ações que ali ocorrem devem ser interpretadas como brincadeira e não literalmente, o troll é aquele que privadamente tem consciência de estar brincando, mas o sucesso de seu jogo depende que o outro o leve a sério.
Não há reciprocidade: ele não brinca com, mas às custas do outro, para diversão sua e de um público capaz de entender e apreciar o espetáculo. Sua comunicação é, portanto, sempre dupla. Aquilo que outros trolls sabem ser brincadeira deve ser levado a sério pelos normies (os “normais”, isto é, os não-trolls); por outro lado, quanto mais longe um troll consegue levar a brincadeira e confundir os normies, mais ele será levado a sério por seus pares.
Aí está a chave para entender a estratégia da alt-right e, por extensão, do bolsonarismo. A dupla comunicação, e o fato de que é o troll quem decide quando está brincando e quando está falando sério, são a base da técnica característica da alt-right de introduzir ideias “polêmicas” e “controversas” no debate público de maneira irônica, humorística ou com certo distanciamento crítico, mantendo sempre a dúvida sobre o quanto ali é brincadeira ou para valer.
Assim, enquanto o público “interno” reconhece o falante como “um dos seus” e entende a mensagem como séria, mas sua veiculação como uma grande piada às custa dos normies, o agitador de extrema direita vai testando os limites do público “externo”, sem nunca deixar de ter uma rota de fuga.
Se em algum momento julgar-se que passou dos limites, ele sempre poderá dar um passo atrás e dizer que foi mal interpretado, que tratava-se de uma brincadeira, e virar a mesa, transformando o episódio num caso de perseguição ou numa defesa da livre expressão e um ataque a uma cultura em que “ninguém mais sabe brincar”.
É o que fazem os humoristas que construíram carreiras como críticos do “politicamente correto”; é também o que fizeram Eduardo Bolsonaro e Paulo Guedes com suas ameaças veladas de AI-5.
Às vezes o agitador será apanhado com uma provocação tão grande que não conseguirá recuar. Nestes casos, como Roberto Alvim e Milo Yiannopoulos (foto), ele será expulso do debate e acabará rejeitado pelos pares porque, com sua inabilidade, ele acabou expondo a mão de seus colegas de jogo. De um jeito ou de outro, porém, ele terá conseguido o que queria, que era mandar sinais a seus asseclas e introduzir ideias extremistas no mainstream.
É por isso que internet deu a este tipo específico de troll o nome de “edgelord”: aquele que usa a ousadia (edginess) para forçar o limite (edge) do aceitável. E se alguém duvida da eficácia dessa tática, basta lembrar que nosso atual presidente foi durante anos troll de estimação de programas de rádio e TV — e o quanto a frase “mas ele só estava brincando” contribuiu para normalizar sua candidatura.

Você trabalha para eles

O jogo da alt-right também é muito eficiente em explorar a indignação de seus adversários para seus próprios fins. Primeiro porque, na economia das redes, engajamento é tudo, não importa se bom ou ruim.
Cada trollagem bem-sucedida produz uma onda de ultraje que leva milhares de pessoas a divulgar o material “polêmico” e sua fonte, aumentando sua circulação, visibilidade e viabilidade financeira ou eleitoral. (Um antídoto para isso é comentar sem citar nomes e compartilhar apenas privadamente.)
Segundo, porque as reações indignadas podem então ser usadas para retratar os adversários como uma versão ainda mais caricata daquilo que se criticava; como otários que caíram na armadilha; como patrulhadores, inimigos da liberdade de pensamento, elitistas; ou ainda como moralistas, sem senso de humor, emocionalmente descontrolados.
Foi assim que a nova extrema direita logrou explorar tanto o rechaço ao “politicamente correto” quanto os pânicos morais característicos do conservadorismo tradicional, e posicionar-se como a voz dos desejos antissistêmicos ao mesmo tempo em que associava a esquerda — que, verdade seja dita, pouco fez para se ajudar — ao establishment, a uma cultura “uncool” e ultrapassada, ao controle de pensamento.
Quando houve a polêmica envolvendo a exposição Queermuseu, já se chamava atenção para o fato que a extrema direita aprendera a utilizar a seu favor a tendência das plataformas digitais a produzir polarização (ou cismogênese, citando Bateson novamente). A pergunta que ficava no ar então era: se as provocações já são feitas prevendo as reações contrárias e sabendo revertê-las em seu favor, e se deixá-las sem réplica também não é uma opção, que tipos de resposta poderiam ser efetivos?
Uma possibilidade que me ocorria naquela época era a operação artística conhecida como superidentificação, que consiste basicamente em, ao invés de antagonizar uma coisa diretamente, tomá-la mais ao pé da letra que seus próprios defensores e levá-la a suas últimas consequências, expondo assim o que ela tem de obsceno, indesejável e abjeto.

Gesamtkunstwerk de Alvim

Um exemplo famoso dessa técnica foi o movimento artístico dos anos 1980 chamado NSK (Neue Slowenische Kunst, ou nova arte eslovena), do qual o grupo de rock industrial Laibach foi a parte mais conhecida. Em vez de assumir a posição familiar de críticos do regime iugoslavo, o NSK performava uma adesão ao Estado e à ideia de nação tão exagerada que tornava visível o que era problemático em ambos de maneira mais desconfortável que qualquer dissidente.
Com o tempo, a mesma tática seria usada contra o bom-mocismo liberal do “Ocidente”. Na versão do Laibach para uma canção do Queen, o ar marcial da música dava às platitudes bem-intencionadas da letra (“uma só carne, uma religião verdadeira”) conotações alarmantemente fascistas.
Usar a superidentificação no Brasil hoje seria, portanto, pegar aquilo que os edgelords bolsonaristas dizem nas entrelinhas e trazê-lo às claras, rompendo com a indefinição “é sério/é brincadeira” própria de seu jogo.
O risco, óbvio, é que haja tantos absurdos circulando no debate público que a caricatura dos mesmos não só já não cause repulsa, mas acabe angariando apoios. Em todo caso, esta discussão foi antecipada nos últimos dias pelo “polêmico” vídeo de Alvim.
Sejamos claros. O secretário não caiu por “ser” nazista; é perfeitamente provável que o nazismo seja para ele uma máscara como qualquer outra. Também não caiu por citar ou se inspirar no nazismo; outros membros do governo fizeram isso e saíram prestigiados. Tampouco caiu porque foi pego; a citação era uma trollagem e, como tal, estava lá para despertar risos nos amigos e fúria nos adversários.
Roberto Alvim caiu porque faltou-lhe a arte de seus colegas de governo para testar os limites sem perder a mão.
Na ânsia de agradar os novos patrões, ele carregou tanto na dose que, como um “idiot savant”, acabou produzindo uma obra-prima acidental da superidentificação: um discurso que juntava alguns dos elementos mais sinistros no ideário bolsonarista e os comparava explicitamente — e em termos positivos! — ao nazismo. Poucas críticas ao governo foram, até aqui, tão demolidoras quanto essa.
Há anos, o jogo do edgelord tem sido o cavalo de Troia da alt-right para penetrar no debate público e fazer o que a chama de “guerra cultural”. Mas o jogo não depende apenas da soberania que o troll tem sobre o próprio discurso, sua capacidade de operar numa zona de indistinção entre seriedade e brincadeira. Ele também depende de uma classe política, imprensa, operadores do mercado etc. dispostos a permitir ou mesmo incentivar que os agitadores sigam jogando.
Tratar Roberto Alvim como “exceção”, caso de “foro privado”, ou mesmo a prova de que o governo não é extremista e as instituições o estão moderando, é fazer-se de desentendido quanto à natureza do que ele foi pego fazendo e fingir que não há vários outros jogando o mesmo jogo todos os dias nas redes, na mídia e no discurso oficial.
É também normalizar o fato que, para além do “exagero” das referências cifradas ao nazismo, o conteúdo de sua fala e o dirigismo de seu Prêmio Nacional das Artes bastam para mostrar que a extrema direita está avançando.
É bom que quem faz isso em nome das reformas, da economia, do carreirismo ou da expediência política tenha bem claro que está contribuindo para trazer o extremismo cada vez mais para o centro da arena. Qualquer hora dessas, pode ser tarde demais para pôr as barbas de molho.

Rodrigo Nunes é professor de filosofia moderna e contemporânea na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e autor de “Organisation of the Organisationless: Collective Action after Networks”. Seu novo livro, “Beyond the Horizontal – Rethinking the Question of Organisation”, sairá em breve pela editora britânica Verso.

sábado, 25 de maio de 2013

Pedro Saraiva: Sobre a vinda dos 6.000 médicos cubanos - Viomundo - O que você não vê na mídia

Pedro Saraiva: Sobre a vinda dos 6.000 médicos cubanos - Viomundo - O que você não vê na mídia

Pedro Saraiva: Sobre a vinda dos 6.000 médicos cubanos

publicado em 9 de maio de 2013 às 9:43

Por Pedro Saraiva, no blog do Nassif
Olá Nassif, sou médico e gostaria de opinar sobre a gritaria em relação à vinda dos médicos cubanos ao Brasil. Bom, como opinião inteligente se constrói com o contraditório, vou tentar levantar aqui algumas informações sobre a vinda de médicos cubanos para regiões pobres do Brasil que ainda não vi serem abordadas.
– O principal motivo de reclamação dos médicos, da imprensa e do CFM seria uma suposta validação automática dos diplomas destes médicos cubanos, coisa que em momento algum foi afirmado por qualquer membro do governo. Pelo contrário, o próprio ministro da saúde, Antônio Padilha, já disse que concorda que a contratação de médicos estrangeiros deve seguir critérios de qualidade e responsabilidade profissional. Portanto, o governo não anunciou que trará médicos cubanos indiscriminadamente para o país. Isto é uma interpretação desonesta.
– Acho estranho o governo ter falado em atrair médicos cubanos, portugueses e espanhóis, e a gritaria ser somente em relação aos médicos cubanos. Será que somente os médicos cubanos precisam revalidar diploma? Sou médico e vivo em Portugal, posso garantir que nos últimos anos conheci médicos portugueses e espanhóis que tinham nível técnico de sofrível para terrível. E olha que segundo a OMS, Espanha e Portugal têm, respectivamente, o 6º e o 11º melhores sistemas de saúde do mundo (não tarda a Troika dar um jeito nesse excesso de qualidade). Profissional ruim há em todos os lugares e profissões. Do jeito que o discurso está focado nos médicos de Cuba, parece que o problema real não é bem a revalidação do diploma, mas sim puro preconceito.
– Portugal já importa médicos cubanos desde 2009. Aqui também há dificuldade de convencer os médicos a ir trabalhar em regiões mais longínquos, afastadas dos grandes centros. Os cubanos vieram estimulados pelo governo, fizeram prova e foram aprovados em grande maioria (mais à frente vou dar maiores detalhes deste fato).
A população aprovou a vinda dos cubanos, e em 2012, sob pressão popular, o governo português renovou a parceria, com amplo apoio dos pacientes. Portanto, um dos países com melhores resultados na área de saúde do mundo importa médicos cubanos e a população aprova o seu trabalho.
– Acho que é ponto pacífico para todos que médicos estrangeiro tenham que ser submetidos a provas aí no Brasil. Não faz sentido importar profissionais de baixa qualidade. Como já disse, o próprio ministro da saúde diz concordar com isso. Eu mesmo fui submetido a 5 provas aqui em Portugal para poder validar meu título de especialista. As minhas provas foram voltadas a testar meus conhecimentos na área em que iria atuar, que no caso é Nefrologia. Os cubanos que vieram trabalhar em Medicina de família também foram submetidos a provas, para que o governo tivesse o mínimo de controle sobre a sua qualidade.
Pois bem, na última leva, 60 médicos cubanos prestaram exame e 44 foram aprovados (73,3%). Fui procurar dados sobre o Revalida, exame brasileiro para médicos estrangeiros e descobri que no ano de 2012, de 182 médicos cubanos inscritos, apenas 20 foram aprovados (10,9%). Há algo de estranho em tamanha dissociação. Será que estamos avaliando corretamente os médicos estrangeiros?
Seria bem interessante que nossos médicos se submetessem a este exame ao final do curso de medicina. Não seria justo que os médicos brasileiros também só fossem autorizados a exercer medicina se passassem no Valida? Se a preocupação é com a qualidade do profissional que vai ser lançado no mercado de trabalho, o que importa se ele foi formado no Brasil, em Cuba ou China?
O CFM se diz tão preocupado com a qualidade do médico cubano, mas não faz nada contra o grande negócio que se tornaram as faculdades caça-níqueis de Medicina. No Brasil existe um exército de médicos de qualidade pavorosa. Gente que não sabe a diferença entre esôfago e traqueia, como eu já pude bem atestar. Porque tanto temor em relação à qualidade dos estrangeiros e tanta complacência com os brasileiros?
– Em relação este exame de validação do diploma para estrangeiros abro um parêntesis para contar uma situação que presenciei quando ainda era acadêmico de medicina, lá no Hospital do Fundão da UFRJ.
Um rapaz, se não me engano brasileiro, tinha feito seu curso de medicina na Bolívia e havia retornado ao país para exercer sua profissão. Como era de se esperar, o rapaz foi submetido a um exame, que eu acredito ser o Revalida (na época realmente não procurei me informar). O fato é que a prova prática foi na enfermaria que eu estava estagiando e por isso pude acompanhar parte da avaliação.
Dois fatos me chamaram a atenção, o primeiro é a grande má vontade dos componentes da banca com o candidato. Não tenho dúvidas que ele já havia sido prejulgado antes da prova ter sido iniciada. Outro fato foi o tipo de perguntas que fizeram.
Lembro bem que as perguntas feitas para o rapaz eram bem mais difíceis que aquelas que nos faziam nas nossas provas. Lembro deles terem pedidos informações sobre detalhes anatômicos do pescoço que só interessam a cirurgiões de cabeça e pescoço. O sujeito que vai ser médico de família, não tem que saber todos os nervos e vasos que passam ao lado da laringe e da tireoide. O cara tem que saber tratar diarreia, verminose, hipertensão, diabetes e colesterol alto. Soube dias depois que o rapaz tinha sido reprovado.
Não sei se todas as provas do Revalida são assim, pois só assisti a uma, e mesmo assim parcialmente. Mas é muito estranho os médicos cubanos terem alta taxa de aprovação em Portugal e pouquíssimos passarem no Brasil. Outro número que chama a atenção é o fato de mais de 10% dos médicos em atividade em Portugal serem estrangeiros. Na Inglaterra são 40%. No Brasil esse número é menor que 1%. E vou logo avisando, meu salário aqui não é maior do que dos meus colegas que ficaram no Brasil.
– Até agora não vi nem o CFM nem a imprensa irem lá nas áreas mais carentes do Brasil perguntar o que a população sem acesso à saúde acha de virem 6000 médicos cubanos para atendê-los. Será que é melhor ficar sem médico do que ter médicos cubanos? É o óbvio ululante que o ideal seria criar condições para que médicos brasileiros se sentissem estimulados a ir trabalhar no interior. Mas em um país das dimensões do Brasil e com a responsabilidade de tocar a medicina básica pulverizada nas mãos de centenas de prefeitos, isso não vai ocorrer de uma hora para outra.
Na verdade, o governo até lançou nos últimos anos o Programa de Valorização do Profissional da Atenção Básica (Provab), que oferece salários mensais de R$ 8 mil e pontos na progressão de carreira para os médicos que vão para as periferias. O problema é que até hoje só 4 mil médicos aceitaram participar do programa. Não é só salário, faltam condições de trabalho. O que fazemos então? Vamos pedir para os mais pobres aguentar mais alguns anos até alguém conseguir transformar o SUS naquilo que todos desejam? Vira lá para a criança com diarreia ou para a mãe grávida sem pré-natal e diz para ela segurar as pontas sem médico, porque os médicos do sul e sudeste do Brasil, que não querem ir para o interior, acham que essa história de trazer médico cubano vai desvalorizar a medicina do Brasil.
– É bom lembrar que Cuba exporta médicos para mais de 70 países. Os cubanos estão acostumados e aceitam trabalhar em condições muito inferiores. Aliás, é nisso que eles são bons. Eles fazem medicina preventiva em massa, que é muito mais barata, e com grandes resultados. Durante o terremoto do Haiti, quem evitou uma catástrofe ainda maior foram os médicos cubanos. Em poucas semanas os médicos dos países ricos deram no pé e deixaram centenas de milhares de pessoas sem auxílio médico.
Se não fosse Cuba e seus médicos, haveria uma tragédia humanitária de proporções dantescas. Até o New England Journal of Medicine, a revista mais respeitada de medicina do mundo, fez há poucos meses um artigo sobre a medicina em Cuba. O destaque vai exatamente para a capacidade do país em fazer medicina de qualidade com recursos baixíssimos (http://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMp1215226).
– Com muito menos recursos, a medicina de Cuba dá um banho em resultados na medicina brasileira. É no mínimo uma grande arrogância achar que os médicos cubanos não estão preparados para praticar medicina básica aqui no Brasil. O CFM diz que a medicina de Cuba é de má qualidade, mas não explica por que a saúde dos cubanos, como muito menos recursos tecnológicos e com uma suposta inferioridade qualitativa, tem índices de saúde infinitamente melhores que a do Brasil e semelhantes à avançada medicina americana (dados da OMS).
– Agora, ninguém tem que ir cobrar do médico cubano que ele saiba fazer cirurgia de válvula cardíaca ou que seja mestre em dar laudos de ressonância magnética. Eles não vêm para cá para trabalhar em medicina nuclear ou para fazer hemodiálises nos pacientes. Medicina altamente tecnológica e ultra especializada não diminui mortalidade infantil, não diminui mortalidade materna, não previne verminose, não conscientiza a população em relação a cuidados de saúde, não trata diarreia de criança, não aumenta cobertura vacinal, nem atua na área de prevenção. É isso que parece não entrar na cabeça de médicos que são formados para serem superespecialistas, de forma a suprir a necessidade uma medicina privada e altamente tecnológica. Atenção! O governo que trazer médicos para tratar diarreia e desidratação! Não é preciso grande estrutura para fazer o mínimo. Essa população mais pobre não tem o mínimo!
Que venham os médicos cubanos, que eles façam o Revalida, mas que eles sejam avaliados em relação àquilo que se espera deles. Se os médicos ricos do sul maravilha não querem ir para o interior, que continuem lutando por melhores condições de trabalho, que cobrem dos governos em todas as esferas, não só da Federal, melhores condições de carreira, mas que ao menos se sensibilizem com aqueles que não podem esperar anos pela mudança do sistema, e aceitem de bom grado os colegas estrangeiros que se dispõe a vir aqui salvar vidas.
Infelizmente até a classe médica aderiu ao ativismo de Facebook. O cara lê a Veja ou O Globo, se revolta com o governo, vai no Facebook, repete meia dúzia de clichês ou frases feitas e sente que já exerceu sua cidadania. Enquanto isso, a população carente, que nem sabe o que é Facebook morre à mingua, sem atendimento médico brasileiro ou cubano.